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Fundo branco
  • Foto do escritorTanussi Cardoso Poeta

sextas poéticas - poema inédito - 19/04/24



SALTO



Eu, que tenho a idade dos lobos nas festas dos cemitérios

Eu, que sinto o pulso das marés nas ondas que não mais surfo

Eu, que vi o último pássaro a vagar solto pelos vales soturnos

aprendi a liberdade do beijo na boca saborosa do espelho

Eu, que tenho o sexo a latejar loucuras, punhais, venenos

e vi meninos negros a mendigar brinquedos

acreditei em estrelas, luas, mistérios e desejos

Eu, que compreendo os velhos que do amor não souberam

e cresci ouvindo o pai dizer homem não chora

ainda choro ao ouvir o som das sanfonas nos desertos

Eu, que no escuro cego ainda sinto os dedos fálicos e crus

dos mágicos sonhos secretos e gozo

Eu, que desde antes do Dilúvio perdi a fé

aprendi que Deus é um ser estranho

fantasma que come seus frutos

Eu, incêndio inaugurando o mar

Eu, o permanente escândalo dos rumores e provérbios

a água que não pode ser bebida

a hóstia que não pode ser servida

a pele que não pode ser tocada

o corpo que não pode ser comido

para que o labirinto não se desfaça

e a esfinge não perca o seu encanto

Eu, que sei o insustentável peso da paixão

do preço de um homem no chão

do olho que só me vê fora de mim

espião

de mim mesmo o ladrão

alma que se liberta do seu cão

Eu, esse descompasso corporal

aprendi que fazer poemas é equilibrar ócio e vício

e me assusta a luz da lua entrando

pela janela aberta desse edifício

 

(Tanussi Cardoso)

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