SALTO
Eu, que tenho a idade dos lobos nas festas dos cemitérios
Eu, que sinto o pulso das marés nas ondas que não mais surfo
Eu, que vi o último pássaro a vagar solto pelos vales soturnos
aprendi a liberdade do beijo na boca saborosa do espelho
Eu, que tenho o sexo a latejar loucuras, punhais, venenos
e vi meninos negros a mendigar brinquedos
acreditei em estrelas, luas, mistérios e desejos
Eu, que compreendo os velhos que do amor não souberam
e cresci ouvindo o pai dizer homem não chora
ainda choro ao ouvir o som das sanfonas nos desertos
Eu, que no escuro cego ainda sinto os dedos fálicos e crus
dos mágicos sonhos secretos e gozo
Eu, que desde antes do Dilúvio perdi a fé
aprendi que Deus é um ser estranho
fantasma que come seus frutos
Eu, incêndio inaugurando o mar
Eu, o permanente escândalo dos rumores e provérbios
a água que não pode ser bebida
a hóstia que não pode ser servida
a pele que não pode ser tocada
o corpo que não pode ser comido
para que o labirinto não se desfaça
e a esfinge não perca o seu encanto
Eu, que sei o insustentável peso da paixão
do preço de um homem no chão
do olho que só me vê fora de mim
espião
de mim mesmo o ladrão
alma que se liberta do seu cão
Eu, esse descompasso corporal
aprendi que fazer poemas é equilibrar ócio e vício
e me assusta a luz da lua entrando
pela janela aberta desse edifício
(Tanussi Cardoso)
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